Não é por improbidade, não é por ter cometido um grave crime de responsabilidade e nem mesmo por ter praticado os deslizes contábeis de que é acusada que a presidente Dilma deve ser deposta hoje por um golpe parlamentar. O que Dilma, Lula, o PT e forças da esquerda vão perder hoje é uma “guerra de facções”, como diz o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa evocando Alexander Hamilton, um dos pais da Constituição norte-americana que gerou a figura do impeachment como remédio para anomalias extremas do presidencialismo. Adversários de sempre e aliados de ontem, ressentidos, bandidos e oportunistas, uniram-se numa poderosa facção majoritária no Congresso para sepultar o ciclo de governistas petistas. “O ciclo do PT tem que acabar”, já bradava Aécio Neves em 2013.
Hamilton apontava a revanche das facções como o maior inconveniente do impeachment. E aqui está hoje o Brasil, mostrando ao mundo que sabe copiar e deformar criações alheias. Vulgarizamos a criação americana, aplicando-a, em duas décadas, a dois dos quatro presidentes eleitos depois da ditadura. Lá, onde foi criado, o impeachment foi brandido contra presidentes como chicote de censura mas nunca foi aplicado.
A facção agora formada reuniu todo o arco partidário, exceto PT, PDT, PC do B e PSOL, para dar cabo dos governos petistas. Não porque estivessem realizando uma revolução de caráter classista ameaçador aos interesses das elites de sempre. Nele entrou até o PSB, que agora resolve não entrar no Governo Temer. Mas fez o pior. Sob Lula, com mais perfeição, tivemos governos conciliadores que, embora mantendo castas e privilégios, olharam para a grande planície dos despossuídos, dos mais pobres e esquecidos. “Com a ascensão dos mais humildes todos ganham. Ganha o pobre, ganha o rico, ganham as empresas”, dizia Lula durante seu governo. Mas isso já não bastava. Quando Dilma ganhou novamente em 2014, ele voltou a pregar a conciliação de classes dizendo num vídeo postado no dia seguinte: "Mais generosidade e menos preconceito vai fazer um bem imenso ao País. Se você tem preconceito, abra seu coração”. Mas naquela altura, o demônio da intolerância, o “chega de PT” já começava a dominar corações e mentes. Já se pregava impeachment antes da segunda posse de Dilma. Erros e desacertos cometidos pelo PT foram usados como justificativa mas com a exaltação desproporcional típica dos pretextos nas declarações de guerra. A crítica e a oposição foram se transfigurando em ódio e preconceito. Ainda no governo Lula, tive o primeiro lampejo disso ao participar de um debate em que um cientista política advertia para o perigo da chegada do “governo dos plebeus”. “Eles sujam as paredes dos palácios e pisam com pés sujos nos tapetes “, dizia o intelectual.
Antes de Lula, filho da classe trabalhadora, foi Getúlio, filho da burguesia agrária, o outro presidente que tentou conciliar os interesses de classe, garantindo a primeira cesta de direitos aos trabalhadores, sem nada tirar do alto da pirâmide. Muito pelo contrário, criando as condições para que florescesse no país, - primeiro com a Revolução de 1930 e depois como ciclo industrializante aberto com sua volta em 1950 - sobrepujando o velho coronelismo agrário, uma burguesia urbana e industrial. Mas esta mesma elite não queria ser moderna e civilizada, e muito menos compartilhar o progresso. Seus agentes políticos tentaram o impeachment de Getúlio em 1954 (por supostos crimes de gestão, como agora), e não conseguindo aprová-lo, desencadearam a tempestade de acusações que o levaram ao suicídio. A comoção da morte barrou o retrocesso mas ele veio dez anos depois com o golpe de 64, após o suspiro desenvolvimentista do governo JK. Goulart foi acossado, tentaram impedir sua posse, Brizola garantiu a legalidade em sua trincheira armada. Depois, dispensaram a violência institucional e partiram o golpe então clássico, o dos quartéis, mergulhando o país na ditadura.
Dilma vem sendo acossada com um grau de violência talvez só dedicado a Getúlio. A Lula, garantiu-se a indulgência reservada a coisas passageiras. Um ex-operário que vira fenômeno político, insiste em ser presidente e um dia chega lá. E chegando, será até bom que governe por quatro anos, para dizer ao mundo que neste país dos trópicos existe uma democracia com alguma permeabilidade no acesso ao poder político. Mas não. O homem se reelege, elege a sucessora e ela consegue reeleger-se numa campanha em que a guerra de facções já estava declarada. A violência contra Dilma foi maior porque incluiu a misoginia política, o horror patriarcal ao governo de mulheres. Num estádio lotado, em plena Copa do Mundo, a massa com a mente mandou a presidente “tomar no c”. O mesmo fez um artista de segunda categoria como Fábio Júnior num show em Nova York.
A violência foi maior contra Dilma porque na aliança das facções que moveram a guerra entrou uma mídia avassaladoramente mais poderosa do que em outros tempos, que acumulou poder durante a ditadura e o multiplicou com a revolução tecnológica. E até os governistas petistas ajudaram nesta obra. Nunca os meios de comunicação usaram de forma tão esmagadora seu poder contra um governante. A violência contra Dilma foi maior porque transcorreu numa fase de putrefação do sistema político, levando as disputas para um Judiciário, que ao invés de arbitrar, homologou o linchamento. E antes, permitiu que a Operação Lava Jato, promessa de “limpeza completa” na orgia entre políticos, empresários e tetas do Estado, se transformasse em instrumento político da facção caçadora, arrancando delações, selecionando vazamentos, atropelando garantias.
Foi mais desavergonhada a violência do golpe contra Dilma porque perpetrada neste tempo em que os políticos perderam completamente a vergonha e aquele verniz que costumamos chamar de caráter. Nunca um governante foi tão sordidamente traído por aqueles que se lambuzaram com o poder compartilhado, pelos que adularam para morder e sugar, antes de trair. Ao ponto de um ministro deixar o cargo e correr para o plenário da Câmara para votar a favor do impeachment naquela assembleia vergonhosa da noite de 17 de abril. O emblema da traição, na História, será a sigla PMDB.
Foi sob a batuta de Eduardo Cunha, autorizados por Michel Temer e tangidos pelo PMDB, que ressentidos, bandidos e oportunistas uniram-se ao longo do processo e naquela noite para acertar contas com Dilma. Ela certamente não lhes dava tapinhas nas costas nem com eles trocava piadas. Tentou governar de modo litúrgico, embora entregando-lhes cada vez maiores nacos de poder. Mas eles precisavam encerrar o ciclo petista e defenestrar a mulher que ousou chegar à Presidência e, no cargo, os olhou de frente, com aquela altivez insuportável, dizendo sempre o que pensava.
Por que não a acusaram de outros crimes, por que não tentaram fazer o impeachment com base nas revelações da Lava Jato, onde o PT e os partidos com quem dividiu o poder conquistado em 2002 boiaram na mesma lama? A pergunta foi feita recentemente por Joaquim Barbosa numa postagem em rede social. “Descubra você mesmo “, dizia ele. Eduardo Cunha, ao aceitar o pedido de impeachment, excluiu acusações que poderiam arrastar boa parte dos caçadores. Acolheu apenas as duas acusações por crimes pelos quais apenas ela poderia responder: pedaladas e decretos. Se entrasse, por exemplo, a compra de Pasadena, outros agentes entrariam na roda. Inclusive do PMDB. E assim, recortando acusações, torcendo leis, distorcendo fatos, destroncando princípios constitucionais e garantias, escreveu-se a trama que hoje terá seu penúltimo e mais dramático capítulo, o do afastamento do cargo.
Será mais violento o golpe contra Dilma porque foi construído com sofisticação, revestido de legalidade, de constitucionalidade, num agônico rito legitimado pelo STF. Porque envolvido neste véu que pode enganar os contemporâneos mas não iludirá a História, que não tem apenas olhos de ver.
Muitos erros cometeram o PT, Lula, Dilma e aliados, contribuindo para o desenlace. Falar deles agora seria escárnio e mais crueldade. O maior deles maior deles foi acreditar em governos de coalizão. Mas como governar num sistema que permite a
Lula obter 61% dos votos e apenas 17% das cadeiras na Câmara? Com este sistema e por este caminho, que aprenda a esquerda, não adianta tentar de novo. A partida chega ao fim mas não será o Game Over.
TERESA CRUVINEL
Colunista do 247, Tereza Cruvinel é uma das mais respeitadas jornalista política
Nenhum comentário:
Postar um comentário